Campo arqueológico de Khor Kalba, julho de 2024, emirado de Sharjah, Emirados Árabes Unidos.
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Descrição
Campo arqueológico de Khor Kalba
Área escavada entre 2017 e 2020.
Fotografia de 12 de julho de 2024.
Visita da equipa portuguesa de arquitetura do projeto Sitting Camel à Authority for Initiatives Implementation and Infrastructure Development (AIIID) (Mubadara ou Mbadara), em Sharjah.
Khor Kalba, emirado de Sharjah, Emirados Árabes Unidos.
A antiga fortificação, que os portugueses chamaram Quelba e os povos árabes Khor Kalba, ocupava área de planície arenosa, a leste das montanhas Hajar, hoje em enclave do Emirado de Sharjah, na costa nordeste da Península Arábica, correspondendo ao limite do Golfo de Omã, no noroeste do Oceano Índico. O arqueossítio localiza-se nos limites da atual cidade de Kalba, uma das urbes costeiras orientais dos Emirados Árabes Unidos, perto da fronteira com o sultanato de Omã.
A fortaleza de Kalba e a povoação foram tomadas por Gaspar Leite em março de 1624, segundo António Bocarro (1646, fls. 138, 139), seguindo ordens do capitão-mor de Ormuz, Rui Freire de Andrade. Aquele acontecimento reflete a estratégia económica e militar desenvolvida pelos portugueses no Golfo Arábico e zonas próximas, neste caso justificada pela reconquista da Ilha de Ormuz em maio de 1622, uma vez que Kalba estava sob o domínio do seu sultão, como é mencionado em texto de Manuel Godinho de Herédia (ca 1625). Kalba era então governada por Casmi, “um mouro de grande fama”, certamente, antepassado do atual emir de Sharjah, e, tanto quanto se sabe, não terá havido confronto direto. Os portugueses edificaram um novo forte, com pequenas dimensões e por certo que, sobretudo, com as funções de entreposto comercial, perto de Kalba, em Khor Kalba.
Até onde as informações literárias e arqueológicas permitem concluir, o período de soberania daqueles não durou mais de duas décadas. A proximidade do forte de Quelba/Khor Kalba da beira-mar e nomeadamente tanto junto ao oceano Índico como ao rio Kalba, permitindo ancorar embarcações, constituía ponto de apoio à sua navegação, principalmente durante a época das monções, tanto mais que o local dispunha de água potável e era propício à interação comercial, explica a sua construção. Tal como aconteceu em outras zonas costeiras vizinhas, o novo edifício seguiu as antigas regras de localização, estabelecidas por Diogo Lopes de Sequeira e datadas de 1508.
As campanhas de escavação efectuadas entre 2017–2020 em Quelba/Khor Kalba, pela Missão Arqueológica Portuguesa, com o apoio da Autoridade Arqueológica de Sharjah e do Instituto de Arqueologia e Paleociências (Universidade NOVA de Lisboa), conduziram à descoberta dos vestígios do há muito desaparecido forte português. Este foi arrasado ao nível do solo, tendo sido possível determinar que possuía planta de forma quase quadrangular, medindo cada lado aproximadamente 50 m, orientados, grosso modo, norte-sul e este-oeste, estando defendido por torre de planta circular no canto sudeste, com 8 m de diâmetro. O canto sudoeste apresentaria, provavelmente, torre com forma e tamanho semelhantes aos daquela. As muralhas tinham 2,60 m de espessura desconhecendo-se se existia parapeito, tendo sido construídas em taipa, sobre fundações de pedra de coral e argamassa de cal, e talvez tivessem as superfícies rebocadas. Este tipo expedito de processo construtivo, também utilizado nas torres angulares, tem longa tradição em diferentes continentes, nomeadamente no Próximo Oriente, que persistiu até à Idade Moderna e mesmo mais tarde, sendo muito usado pelos portugueses. A entrada principal no forte abria para sul, onde foram encontrados elementos de construção, de pedra de coral e de outras qualidades, com grandes dimensões, ou as suas marcas, correspondentes às fundações das paredes. No exterior do alicerce da muralha a sul foi detetada camada abundante de conchas, depositada pelas marés, aspeto corroborado pela tradição local que ainda hoje afirma que o antigo forte era frequentemente invadido pelas águas oceânicas, o que levaria à sua deslocação, para local não muito afastado e onde se mantém.
Não sobreviveu nenhum vestígio da casa do capitão ou de outras estruturas significativas. No interior da taipa das paredes foram encontrados fragmentos de cerâmica, algumas do século XVII, que nos fornecem importantes pistas cronológicas, suportando a origem portuguesa do forte de Khor Kalba, possivelmente erguido sob as ordens de Gaspar Leite em ca 1624. Durante as escavações arqueológicas, foram postos à vista, restos de pavimentos feitos com gesso ou cal, contendo por vezes pequenos seixos, tanto no interior como no exterior das muralhas da fortificação, mas nas suas proximidades, e tanto no seu lado oriental como no lado sul. Estes são horizontais, com superfícies planas, repousando nas areias que correspondem ao antigo nível habitado, mostrando buracos de postes, alguns constituindo alinhamentos, por vezes dispostos em paralelo. Eles denunciam a existência de casas, edificadas com troncos e ramos de palmeira tamareira (arish), espécie muito comum na zona e de grande importância económica. Tais casas (barasti) teriam plantas retangulares, as maiores com 5 m a 6 m de comprimento no eixo principal, encontrando-se principalmente orientadas este-oeste, sendo idênticas às estruturas habitacionais, construídas da mesma forma e utilizadas até meados do século passado, nomeadamente por populações de pescadores da costa de Kalba. Identificaram-se pavimentos idênticos no forte português de Libédia/Bidyah (Emirato de Fujairah), também construído na costa, sob as ordens de Mateus de Seabra (1623), com taipa e dimensões semelhantes às do antigo forte de Quelba/Khor Kalba.
Na área interior do forte Quelba/Khor Kalba, encontraram-se poços, com boca redonda, restos de quatro fornos (tannūr s), construídos com pedras e terra, um deles reutilizando grande pote de cerâmica, e dezanove lareiras. A morfologia destas pequenas estruturas de combustão, em fossa, variava, refletindo as suas funções, uma vez que podem corresponder a pontos de iluminação e aquecimento ou a locais onde os alimentos eram cozinhados e consumidos. O conteúdo principal das lareiras é obviamente areia queimada, mas também foram encontrados pequenos fragmentos de cerâmica, peças osteológicas de mamíferos, peixes e crustáceos, assim como conchas de moluscos, em alguns deles, revelando a sua função na preparação de refeições.
Foi identificada pequena depressão escavada no solo, utilizada como lixeira, contendo vários artefactos ou fragmentos descartados, de cerâmica, vidro, pedra e metálicos, nomeadamente moeda safávida de bronze, alfinete de cabelo e fragmento de espeto, também de bronze, contas de concha, ossos de pequenos mamíferos, de peixes e conchas de moluscos. Os restos de recipientes de cerâmica encontrados na zona do forte têm diversificadas origens, características e formatos diferentes, desde panelas, jarros para água e taças, produzidos em oficinas locais ou regionais, até peças vidradas importadas do Omã e Irão ou porcelana da China. Foram também exumadas fusaiolas e marcas de jogo de cerâmica, um pequeno queimador de incenso, de bronze, contas, de vidro e concha, fragmentos de pulseiras, de aplicadores de kohl e de garrafas de vidro.
O abundante espólio recuperado, além de oferecer importante cronologia, situada nos séculos XVII-XVIII, também revela forte interação comercial e fluidez cultural, por certo onde se terão privilegiado as rotas marítimas. [Rosa Varela Gomes, Mário Varela Gomes, Rui Carita]