Desenho da fortaleza de Ormuz, 1515 (c.), in Lendas da Índia de Gaspar Correia, 1560, Academia Real das Ciências, Lisboa, 1860, vol. 2, Portugal.
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Desenho da fortaleza de Ormuz
C. 1515 in Gaspar Correia, Lendas da Índia, 1560
Manuscrito sobre papel, 41,6 × 25,6 cm.
O original encontra-se in IAN/TT, CF 41.
Lisboa: Academia Real das Ciências, 1860, vol. 2.
Pub. in Os Portugueses no Golfo, 1507–1650, uma história interligada, The Portuguese in the Gulf, 1507–1650, an interlinked history, catálogo de exposição na Feira do Livro do Emirado de Sharjah, Emirados Árabes Unidos, 1–12 novembro 2023, com coordenação científica de José Pedro Paiva e Roger Lee de Jesus, apresentação/introdução de Ahmed Bin Rakkad Al Ameri, presidente da Sharjah Book Authority, Centro de História de Sociedade e Cultura da Universidade de Coimbra, Imprensa da Universidade, março de 2023, nº 24, p. 82.
Ormuz é um estreito à entrada do Golfo, uma ilha do seu lado norte, e a cidade iraniana ali implantada. Foi também um reino com limites variáveis em torno do Golfo. A ilha que, na realidade, se chama Djarun, constitui um círculo irregular com um diâmetro médio de 7 km e tem, a igual distância, a costa do Irão, com a cidade mais próxima, Bandar Abbas, 20 km a noroeste. Mais no seio e comprimindo o sifão do estreito, estão as ilhas de Larak e Qeshm, onde se fazia aguada, pois Djarun, com um solo salgado, quase não tem água doce. Árido e de cores tão estranhas quanto variadas, o solo compõe, numa topografia muito irregular, uma paisagem crespa, tórrida e elevada na frente para o estreito, e baixa numa língua de terra que avança pelo canal que separa a ilha do continente, com o topónimo Morona. Com boas condições portuárias e de segurança, esta frente para o canal oferecia-se à instalação humana. No início do século XIV, o rei de Ormuz para ali levou, do continente, a sua capital, incluindo o topónimo. As suas excecionais condições defensiva, urbana e mercantil deram-lhe a distinção de ter sido o centro da região.
Com exceção para uma parca recolha de sal-gema, óxido de ferro, enxofre e pérolas naturais, Ormuz nada produziu ou produz, e o calor é insuportável. Todavia, a sua capitalidade regional ditou um extraordinário desenvolvimento e afirmação como o mais importante empório de troca de bens entre o Médio Oriente e o Oriente, com ênfase na Ásia do Sul. No trânsito para os portos do Guzarate, Malabar e Vijayangar (Goa e Karnataka), eram géneros mais expressivos os frutos secos (tâmaras e compotas), corantes, pedra hume, aço, enxofre, sal, pérolas e, com grande destaque, cavalos. E, ainda em quantidades significativas, ervas aromáticas e medicinais, pedras preciosas, têxteis (sedas, tapetes, brocados) e artigos de luxo, como joias e armas de aparato. No sentido inverso circulavam produtos de algodão, manteiga de Sindh e Mangalore, açúcar e ferro de Vijayanagar, arroz e especiarias de Karnataka e Malabar, e até porcelana da China. Assim se compreende que, mais do que a porta marítima do Golfo, nesses tempos o Estreito de Ormuz fosse considerado no Ocidente o início das Índias. A presença portuguesa ditou a introdução de novos motivos e bens, do que são prova diversas representações em têxteis, e até os azulejos persas da Igreja de Santa Mónica de Goa ali foram encomendados.
De tudo isso deram conta os muitos relatos de viajantes, primeiro sobre a desaparecida Ormuz continental, depois sobre a Ormuz insular. Descrevem uma cidade grande, rica e densa, o que é corroborado pelo desenho de Gaspar Correia que a representa num equívoco misto de 1515 (quando a conheceu) e alterações posteriores. Também uma urbe cosmopolita, que poderá ter chegado a ter 50.000 habitantes de comunidades de religiões diversas e costumes ousados. O anónimo do Livro das cidades, e fortalezas… sintetiza em 1582 essa informação sobre “o mais celebre emporio e escala do mundo, em que mor concurso e trato há de todallas mercadorias Orientaes e Occidentaes”, ou seja, era “a mais importante fortaleza que os Reis de Portugal teem nas partes da Índia.” Quando, em 1498, as armadas portuguesas abriram a Rota do Cabo, Ormuz era, pois, uma demonstração extrema de quanto o comércio determina a urbanidade e a civilização, e de como esta marca as paisagens mentais, os imaginários.
A Coroa portuguesa cedo viu que, mais rentável que o trato com a Índia pela Rota do Cabo, seria dominar o comércio do Índico, o que implicava o controlo das rotas do Mar Vermelho e do Golfo, e que isso também lhe permitiria canalizar para a sua rota marítima o comércio daquelas rotas mistas para o Mediterrâneo. Também se apercebeu que não tinha contingentes suficientes para monopolizar esse trato, mas que poderia taxá-lo se dominasse os seus portos. A falha no domínio do Mar Vermelho, foi compensada pelo sucesso no Golfo, de que Ormuz era a cabeça. Pêro da Covilhã, na sua viagem terrestre de espionagem simultânea à descoberta da Rota do Cabo, estivera lá e relatara-o. A presença regular de frotas no Estreito de Bab-el-Mandeb (porta do Mar Vermelho), e a pesada taxação nos portos das embarcações que de lá viessem, ou para lá fossem, foi o esforço possível para tentar canalizar esse fluxo para o Golfo.
Seguindo uma estratégia delineada em Lisboa, Afonso de Albuquerque (1453–1515) no início da sua última longa missão no Índico, procurou estabelecer o domínio português no Mar Vermelho e no Golfo. Entre outras ações, em setembro de 1507 assenhoreou-se de Ormuz, mas teve de a abandonar logo em abril seguinte. Só perto do final da sua vida, e já como Governador da Índia Portuguesa (1509–1515), voltaria para fixar o seu domínio. Não era absoluto, pois o soberano manteve-se, com suserania ao rei português. Segundo esse protetorado, o estabelecimento português em Ormuz, apoiado em alguns outros portos do golfo, constituiu o coroamento da estratégia seguida por Albuquerque de conquista dos pontos-chave das rotas comerciais do Índico, cujo extremo oposto era Malaca (Malásia, 1511), e tinha como centro Goa (Índia, 1510).
Em 1622, em plena união das coroas portuguesa e espanhola, uma coligação entre Abbas I da Pérsia e a Companhia Britânica das Índias Orientais pôs fim àquele protetorado. Além de ter desempenhado o papel de plataforma portuguesa para as muito intensas relações diplomáticas com a Pérsia, Ormuz tinha sido, até então e de longe, o posto mais rentável de todo o império, mesmo com o declínio verificado nos saldos da sua alfândega nas últimas décadas (95% de 1605 a 1618). Essa quebra de rentabilidade ficou a dever-se a contrabando e corrupção, não tanto a uma diminuição do trato. Todavia, com o fim do domínio português a relevância comercial de Ormuz cessou, pois o rei persa mudou as suas funções comerciais para Bandar Abbas (Comorão para os portugueses), no continente, decerto por influência dos ingleses, que ali haviam estabelecido uma feitoria. O que congelou e fez mirrar Ormuz, que hoje é um pacato núcleo urbano onde quase só as ruínas da fortaleza portuguesa invocam esse passado.
Além das descrições de viajantes, Ormuz conta com um apreciável conjunto de documentação relativa aos mais variados assuntos da presença portuguesa, bem como relatos de episódios específicos, como os de Gaspar Correia nas Lendas da Índia, redigidos, todavia, décadas depois. Conta, também, com um razoável conjunto iconográfico e cartográfico que, como aquele, requer cuidados críticos, pois as técnicas e motivações são diversas, e, em alguns casos, são representações em segunda mão, sem experiência do local. Conta ainda com levantamentos arqueológicos e arquitetónicos das ruínas da fortaleza. Tudo tem sido usado para descortinar, à luz dos contextos pertinentes, diversos aspetos do pouco mais de um século da história portuguesa no local. No que mais diretamente nos diz respeito, a cartografia e iconografia mereceram estudos de identificação de séries e autorias, e, claro, os levantamentos foram utilizados pelos autores para ensaiar reconstituições da fortaleza nas suas diversas fases, e respetiva atribuição de autorias. Sabe-se menos no que diz respeito à estrutura e paisagem urbanas, que se transformaram continuamente entre a conquista e instituição do protetorado português e a sua queda, ou seja, 1507 e 1622. Vejamos, porém, se os três elementos carto-iconográficos que este texto acompanha, nos ajudam a vislumbrá-las. Impõem-se, desde logo, duas ressalvas: além das questões relacionadas com a fortificação, contêm essencialmente dados sobre a localização de instalações católicas de que quase não restam vestígios, o que é natural, pois não só não tiveram tempo de se fazerem robustas, como a expulsão dos portugueses foi também a do catolicismo; qualquer uma delas representa a cidade já depois da destruição do conjunto monumental-palatino preexistente, a frente norte da cidade. Sobre este contamos essencialmente com a gravura de Braun & Hogenberg (in Civitatis Orbis Terrarum) de 1572, e com a memorável descrição-reconstituição histórica de Jean Aubin, segundo a qual, no geral, a cidade era bem arruada, ordenada e com boas praças, o que encontramos em algumas descrições coevas e ainda se vislumbra na sua malha atual.
Seguindo uma regra ensaiada no século XV em Sagres (Portugal), e desenvolvida em vários postos portugueses em África e no Índico, a partir da construção de uma torre empreendida durante o episódio de 1507 e concluída em 1515, a fortaleza foi erguida em Morona, o extremo norte da cidade. A posterior abertura de um fosso de mar a mar, fez dela uma ilha à qual se acedia por uma estreita ponte em pedra, evidenciada no desenho do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, da autoria de Manuel Godinho de Erédia. Tudo adjacente ao complexo palatino do rei local que, por trás de uma espessa muralha com nove torres e uma extensão próxima da centena de metros, incluía mesquitas, madraça, hospital e uma hospedaria. Como refere Aubin “um palácio fortificado que oferecia o aspeto massivo que ainda hoje vemos nas residências dos sheiks árabes do Golfo Pérsico e da Arábia meridional.” Apenas uma rua de costa a costa o separava da mole urbana, pelo que, quer a estrutura funcional quer a posição, tornaram inevitável a sua demolição na operação de ampliação e renovação da fortaleza empreendida em 1539-1540, criando-se a esplanada ou terreiro defensivo, que também funcionou como centro da ribeira (espaço de mediação portuária com caraterísticas específicas nas cidades portuguesas), incluindo as estrebarias dos cavalos em trânsito e a alfândega. O rei mudou-se para um palácio situado no extremo sudoeste do terreiro, sobre o porto ocidental.
Já a presença, entre a alfândega e a mesquita aljama com o seu expressivo minarete, da misericórdia e do respetivo hospital, bem como, mais afastada, da picota, seriam mais próprios de uma praça e consubstanciaram a substituição urbanística do poder local pelo do regime do protetorado português. Começava aí, pois, a cidade propriamente dita, que era densa e composta com casas em pedra e cal, altas, de fenestração erguia e rematadas com terraço. É o que Gaspar Correia, que terá tomado conhecimento das demolições posteriores à sua estadia, compôs com alguns exageros comuns, como na dimensão da picota em madeira erguida logo em 1515, quase ombreando com o minarete que ali se manteve até ao século XIX. Os relatos de que se socorreu seriam anteriores a todas as demolições, pois a mesquita e o minarete acabaram por ficar com frente para o terreiro, aliás ao centro, o que bem se vê em ambos os desenhos de Erédia (as Plantas do Rio de Janeiro e o Lyvro de Plantaforma). Significativamente, também ali se confere que o conjunto da Misericórdia, situado na frente sudeste do terreiro, e uma igreja dedicada a S. João a oeste, enquadravam o expressivo conjunto islâmico. Por trás da misericórdia situava-se o convento agostinho onde, entre outros aspetos, pelo ensino da língua se prepararam missões à corte persa. Dali também partiram, em inícios do século XVII, os monges que fundaram as casas agostinhas de Isfahan, Shiraz e Baçorá, e por ali terão passado, provindas de Shiraz, as relíquias da rainha-mártir Ketevan de Kakheti (Geórgia), antes de seguirem para Goa onde foram sepultadas no respetivo mosteiro. Nada sabemos acerca da materialidade do hospital e daqueles três conjuntos católicos. Sabemos, porém, que a igreja de N.ª S.ª da Conceição, que dava o nome à fortaleza, foi primeiro instalada no cubelo erguido no extremo oeste da sua frente para a cidade, surgindo, aliás, no desenho de Gaspar Correia. A torre de menagem encimava o sino que o rei D. Manuel I mandara retirar da igreja homónima de Lisboa, da Ordem de Cristo, ato cujo simbolismo é evidente. Sabe-se, porém, que cerca de 1525 a igreja foi reinstalada em edifício próprio, também dentro da fortaleza, e o sino movido para uma das torres renovadas do perímetro inicial, pois a torre de menagem central erguida por Albuquerque, cedo obsoleta, foi desmontada. Os materiais precários (p.e. cobertura vegetal), a conversão em mesquita após 1622 e o posterior abandono da fortaleza levaram-na ao desaparecimento.
Não há registos comprovados de mais equipamentos católicos dentro da cidade, até porque o número de crentes e o ambiente da cidade nunca o terão tornado necessário. Ormuz, tal como os demais postos no Golfo, nunca foi objeto de políticas portuguesas de colonização. Mas a marcação portuguesa do território e da paisagem, ou a sua cristianização, era outra coisa, e fora da cidade, em posições elevadas próprias de pequenos santuários de múltiplas religiões, existiram os de N.ª S.º da Penha, N.ª S.ª da Esperança e Santa Luzia, em provável substituição de estruturas islâmicas. No desenho do Lyvro de Plantaforma, que representa toda a ilha, surge a sudoeste, frente à baía de Turumbaque a referência a uma fortificada “quinta del’Rey,” ou seja, do rei local, que era num oásis construído a partir de terra vegetal levada do continente e alimentado pelos três únicos poços com água apenas salobra da ilha. Contém ainda o topónimo “Lardimira” estendido sobre parte considerável da ilha, uma área plana com espaços de lazer e um cemitério islâmico, com mausoléus de alguma monumentalidade.
Ao reverso das dificuldades em reconstituir a estrutura e paisagem urbanas de Ormuz no seu século português, sabe-se bastante sobre a fortaleza, sendo o principal documento as ruínas, pois a brusca decadência da cidade bloqueou a sua descaracterização. A sua composição resultou, como antes dito, de uma sucessão de intervenções visando mantê-la atualizada num tempo em que a evolução da engenharia militar foi vertiginosa. No breve episódio de 1507–1508, Afonso de Albuquerque promovera a construção da referida torre de menagem, quadrada com cerca de 8 metros de lado, mas não passou do primeiro dos três pisos projetados. Concluiu-a quando regressou em 1515, campanha em que se concretizou todo o perímetro que a cercou conforme o desenho de Gaspar Correia. Assim se compôs uma fortificação do primeiro período experimental, moderno-manuelino (torres quadradas, hexagonais, circulares), que sofreria melhorias de igual base conceptual (bastiões de recorte curvilíneo) em 1525–1528 e 1539–1540 e recebeu um primeiro fosso. Em 1558-1560 introduziram-se os baluartes angulares que, com alguns ajustes posteriores, estabilizaram a sua forma de fortificação moderna. Segue, aliás, o modelo experimentado em 1541 em Mazagão (El Jadida, Marrocos) e na sucessão-sobreposição de fases-tipos muitas outras, de que cumpre destacar Diu. Cada uma dessas reformas foi acrescentando área, pois quase sempre cada novo bastião ou baluarte surgiu maior sobre outro, ou à frente do existente. Assim chegou, à versão moderna, com perto de dois hectares, retratada no desenho à guarda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Era uma das maiores fortalezas, que não cercaram uma urbe, erguidas pelos portugueses.
De facto, não continha uma cidade, mas integrava um conjunto de valências que, além da igreja matriz, incluía a casa do capitão e instalações para toda a guarnição militar de cerca de cinco centenas de homens. Para tudo isso, além da cisterna com abóbadas manuelinas e de algumas estruturas menores construídas com o mesmo fim em 1515, na última grande campanha foi construída uma outra de formato oval também abobadada. São os dois belos espaços da Ormuz portuguesa. Mesmos assim insuficientes, em termos funcionais. Não é plausível, como foi proposto há alguns anos, que a cisterna manuelina fosse, afinal, a igreja.
Apesar de muitos o terem declarado inexpugnável, igual sucedia com o aparatoso sistema defensivo, que incluía 70 peças de artilharia. Resistiu, de facto, a diversos ataques, sendo os de 1521 e 1552 de tal relevância que ditaram as principais reformas, ou seja, sempre reativa e não previamente. Mas já antes de 1622 surgiram relatos críticos, o que de forma alguma deslustra o esforço desenvolvido durante um século pelos mais destacados mestres pedreiros e engenheiros militares da coroa portuguesa na Ásia, que chegaram a dirigir equipas mistas que ultrapassaram o milhar de homens em estaleiro. As seis décadas decorridas desde a última grande campanha de obras não se compadeciam com as intervenções pontuais realizadas durante o difícil período da União Ibérica (1581–1640). Ambos os impérios eram grandes de mais e outras nações europeias, como no caso a Inglaterra, tinham entrado em campo. [Walter Rossa] (pp. 82 a 89)