Diploma de mérito da cidade do Funchal para Vicente Jorge Gomes da Silva, 21 de agosto de 2021, ilha da Madeira
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Descrição
Diploma de mérito, grau de ouro, da cidade do Funchal para Vicente Jorge Silva.
(1945-2020)
Fotografia de Rui Marote, 21 de agosto de 2021.
Funchal, ilha da Madeira.
Vicente nasceu no Funchal no dia 8 de novembro de 1945. Cresceu ao lado de um estúdio fotográfico, o Atelier Vicente's, hoje Museu de Fotografia da Madeira, criado pelo bisavô Vicente Gomes da Silva, em 1846. O avô Vicente Júnior fora fotógrafo. O pai, Jorge Bettencourt Gomes da Silva (1913-2008), era fotógrafo. O tio, Vicente Bettencourt Gomes da Silva, também era fotógrafo. E ele andava por ali, entre cenários, máquinas fotográficas, livros de técnicas fotográficas e mobiliário de atelier. O atelier intrigava-o. Era como se ele fosse a Alice e o atelier o País das Maravilhas. Terá começado aí a sua paixão pelo cinema. Adorava assistir a matinées e soirées. Aos 15 anos, escrevia crítica de filmes para maiores de 17. Findo o 5.º ano (actual 9.º), o reitor do Liceu Nacional do Funchal, hoje Escola Secundária Jaime Moniz, convidou-o a deixar o estabelecimento. Se o pai o matriculasse, faria chegar informação comprometedora à polícia política.
Durante um par de anos, viveu fora do país. Trabalhou numa fábrica de cola em Paris, lavou pratos em Londres, carregou lixo e colchões num hotel de Bournemouth. Ainda foi jardineiro e cuidador de idosos antes de regressar à ilha. Decorria 1966. A Guerra Colonial travava-se em várias frentes e ele podia ter ido lá parar. Os maus ouvidos livraram-no do serviço militar obrigatório.
Uma forma de resistência
“Eu acabara de fazer 21 anos e, uma noite, o Artur Andrade, contrabaixista no Casino, veio anunciar-nos, muito excitado, que tinha alugado o título de um jornal sem leitores que então se editava na Madeira.” O relato, feito a Tolentino de Nóbrega (1952-2015), está num artigo publicado no PÚBLICO a 2 de Janeiro de 2007. “O jornal chamava-se Comércio do Funchal, um título ingrato, mas o nosso pequeno grupo percebeu que estava ali a oportunidade com que sempre sonháramos desde os tempos das páginas juvenis e de ‘artes e letras’ que fôramos publicando na imprensa local. Era a oportunidade de termos um jornal nosso, contra o paroquialismo sufocante e a fealdade gráfica dos outros jornais regionais. Imprimimo-lo em papel cor-de-rosa para sublinhar a diferença.” O meio era pequeno. Vicente e os amigos conseguiam negociar com os censores, que bem conheciam. “Ousávamos publicar coisas que seriam quase impensáveis na imprensa continental e isso mobilizou a atenção de amigos mas também de inimigos”, disse ainda. Por causa de uma edição inspirada pelo Maio de 68, o jornal foi suspenso durante uns meses. Nesse embalo, ganhou leitores no território continental. Chegou a vender 15 mil exemplares, algo extraordinário na época.
Ao apresentar o livro Vicente Jorge Silva — Conversas com Isabel Lucas (Temas e Debates, 2013), o historiador Pacheco Pereira, reconhecendo-o como uma figura histórica do jornalismo, destacou essa "experiência madeirense": “O que tinha de diferente o Comércio do Funchal — e essa diferença valorizou-se com os anos — é que era único no sentido de que correspondia a uma área da esquerda radical, mas que não era sectária. [Na época] isso praticamente não existia em lado nenhum, a não ser mesmo em vésperas do 25 de Abril de 1974.”
A seguir ao 25 de Abril de 1974, que derrubou a ditadura e, com ela, a censura prévia, Vicente mudou-se para Lisboa. Tornou-se jornalista do Expresso. Foi chefe de redacção e director adjunto. Criou e dirigiu a Revista, reservando um espaço inusitado para a cultura e para o internacional. “Foi ela que puxou o jornal para cima numa altura de um cinzentismo absoluto na imprensa portuguesa”, salientou, na já referida entrevista à Sábado. “Aí o meu grande companheiro foi o Mega [Ferreira].”
Custou-lhe sair do Expresso. Tinha uma grande ligação afectiva ao jornal. Ainda apresentou o projecto do diário a Francisco Pinto Balsemão antes de ir à Maia apresentá-lo a Belmiro de Azevedo, então presidente da Sonae. No dia 2 de Maio de 1989 estavam ambos a apresentar a ideia em conferência de imprensa. “[Belmiro] mostrou-se logo convictamente interessado”, declarou ao jornal i, a propósito da sua morte, em 29 de Novembro de 2017. “Ele tinha lucidez, percebeu que iria dar prestígio à Sonae.”
A primeira capa fazia referência à sucessão de Álvaro Cunhal no PCP e a um jogo disputado pelo FC Porto e pelo SC Sporting. Mas não é essa a sua capa de eleição. Em setembro de 2017, quando lhe lançaram esse desafio, escolheu, sem hesitar, uma que combina a frase "Obrigado, Gorbatchov" com um grande plano do antigo dirigente soviético. Era 25 de Dezembro de 1991. “O homem que descongelara a História anunciava nesse dia a sua demissão de Presidente de uma União Soviética em extinção. E sentimos o dever imperioso de assinalar um acontecimento sem precedentes na nossa vida de jornalistas. Escolhemos uma capa que dispensava elementos noticiosos.”
Logo no início dessa década, Mário Soares (1924-2017), então Presidente da República, quis atribuir-lhe o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Recusou e até escreveu um editorial a defender que os jornalistas deviam dispensar tais honras. Isso não o impediu de, mais tarde, integrar o grupo que reclama à Presidência da República a Ordem da Liberdade para Tolentino de Nóbrega (1952-2015).
(Ana Cristina Pereira, 8 set. 2020)